Uma das palavras-chave das chamadas “soft skills” a serem treinadas pelas crianças do século 21 é a criatividade (Martins, 2020b). A criatividade é vista como parte da natureza da criança, tornando-se uma questão de potencial a ser atualizado, ou não, pela educação. CREAT_ED busca compreender historicamente como a ideia da criança como sujeito criativo se tornou um ponto quase inquestionável na educação. Para se tornar uma meta educacional, a criatividade teve que emergir como um problema e ansiedade na educação (Martins, 2020a). A fabricação da criança criativa vem acompanhada da esperança de um futuro melhor, mas também do medo do cidadão que não se enquadra nessa categoria.
CREAT_ED parte do trabalho que temos vindo a desenvolver como crítica à instrumentalização da criatividade no campo educativo português, espelhando directivas internacionais. Este trabalho (Assis 2017, 2019; Martins 2014, 2020a, 2020b) permite-nos perceber que existem algumas linhas complexas que tornam este “presente” possível e que precisam de ser historicizadas (Popkewitz 2013) do final do século 18 até ao Pós-Segunda Guerra, desde um momento em que a imaginação e a criatividade ocupavam um lugar ambíguo nos discursos educacionais, até à sua mercantilização e homogeneização.
A historicização da criança criativa como um “acontecimento” é necessária para não tomar como garantida a criatividade como um conceito essencialista. Seguindo uma perspectiva foucaultiana (Foucault 1972, 1980), a questão poderia ser: Como é possível pensar a criança como pessoa criativa e quais os efeitos produzidos na fabricação da criança criativa? Historicamente, a ideia de desenvolver a criatividade da criança nem sempre foi entendida como um objetivo educacional e, quando se transformou em problema educacional, a criatividade variou em termos de propósitos, práticas e significados a ela associados.
No entanto, mesmo que diferentes noções de quem era a criança, quem a criança deveria se tornar e como a criança aprendia mudaram ao longo da história, o contexto necessário para desencadear a natureza criativa da criança, ou para governar esse potencial, foi concebido como o campo da educação artística. CREAT_ED examinará o fluxo de ideias e práticas pedagógicas que circularam entre os discursos e textos científicos de educação artística americana e europeia, sobre o desenvolvimento da natureza criativa da criança como objeto de estudo, intervenção e desenvolvimento e como rupturas e continuidades foram potencializadas em diferentes tempos e espaços.
Partimos de uma abordagem estratégica “presentista” que, de acordo com Fendler (2008), permite um envolvimento crítico com o presente. A criatividade não é apenas um nome. É um actor n/do mundo (Hacking 2006). Essa invenção possibilitou o movimento ocidental de educação pela arte e a construção epistemológica do campo a nível internacional. Ao mesmo tempo, tornou possível um certo tipo de sujeito humano, que é a criança criativa. Na formação da criança criativa, várias práticas violentas e excludentes estiveram em jogo e ainda estão. A retórica da criatividade na educação considera a criatividade como uma “essência” sem história.
A nossa abordagem ao presente, no entanto, considera a criatividade como um evento histórico que precisa ser desmontado em suas diferentes complexidades. CREAT_ED está relacionado com a ideia de mudança, não em termos de fornecer soluções, receitas ou uma boa visão da criatividade na educação, mas com a possibilidade de compreender os nossos limites em relação à criatividade. Quatro linhas serão exploradas ao longo do arco temporal situado entre o final do século 18 e o pós-Segunda Guerra Mundial:
- As esperanças e medos da criatividade na educação;
- A criança como um ser criativo dentro do movimento artístico infantil e a fabricação do “Outro”;
- Os espaços e materialidades no fazer da criança criativa;
- A conceituação da mente como programada e criativa, desde o essencialismo do cálculo ao discurso cibernético na programação da criatividade na educação.
O que vamos disponibilizar é uma coleção sistemática sobre a invenção da criança criativa de 1762 a 1973, por meio de uma cronologia online, que conterá materiais (textos e imagens representativas dessa construção). Esta história começa em Genebra, com a publicação do Emílio de Rousseau, e chega a Portugal com um seminário da OCDE, ainda durante o regime da ditadura, sobre criatividade nas escolas. Ela viajará pela Europa e pelos Estados Unidos ao longo desse período de tempo. Como história do presente, essa historicização não é neutra.
O nosso grande desafio em CREAT_ED é articular este “arquivo” com base nas 4 linhas de força que apresentamos e assim começar a contribuir para um projeto futuro, de maior abrangência, que possa, a partir da ousadia agora explorada, começar a construir histórias desta criança, com mais especificidades locais. Por enquanto, concentramos-nos na ideia de como se tornou razoável pensar na criança como criativa em ambientes educacionais.
CREAT_ED é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
Referência do projeto: EXPL/CED-EDG/0824/2021
Referências bibliográficas
· Assis, T. (2017). Docência e investigação em Arte – biopolítica e a operação da criatividade artística e tecnológica na educação: o caso do perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória. In L. G. Correia, R. Leão, & S. Poças (Eds.), O Tempo dos Professores (pp. 787–793). Porto: CIIE.
· Assis, T. (2019). Programming Creativity: Technology and Global Politics in the National Curriculum. In L. G. Chova, A. L. Martínez, & I. C. Torres (Eds.), INTED19 Proceedings: 13th annual International Technology, Education and Development Conference (pp. 5542–5551). Valencia: IATED Academy.
· Fendler, Lynn (2008). The Upside of Presentism, Paedagogica Historica 44, no. 6, pp. 677–78.
· Foucault, M. (1972). The Archaeology of Knowledge & The Discourse on Language. New York: Pantheon Books.
· Foucault, M. (1980). Nietzsche, Genealogy, History. In D. F. Bouchard (Ed.), Language, Counter-Memory, Practice. Selected Essays and Interviews by Michel Foucault (pp. 139–164). New York: Cornell University Press.
· Hacking, I. (2006). Kinds of People: Moving Targets. The Tenth British Academy Lecture. British Academy.
· Martins, C. S. (2014). Disrupting the consensus: creativity in European educational discourses as a technology of government. Knowledge Cultures, 2(3), 118–135.
· Martins, C. S. (2020a). Post-World War Two Psychology, Education and the Creative Child: Fabricating Differences. In T. S. Popkewitz, D. Pettersson, & K.-J. Hsiao (Eds.), The International Emergence of Educational Sciences in the Post-World War Two Years Quantification, Visualization, and Making Kinds of People (pp. 91–108). New York: Routledge.
· Martins, C. S. (2020b). The Fabrication of the Chameleonic Citizen of the future through the Rhetoric of Creativity: Governmentality, Competition and Human Capital. In C.-P. Buschkühle, D. Atkinson, & R. Vella (Eds.), Art-Ethics-Education (pp. 26–43). Leiden and Boston: Brill Sense.
· Popkewitz, T. S. (2013). Styles of Reason: Historicism, Historicizing, and the History of Education. In Rethinking The History Of Education. Transnational Perspectives on Its Questions, Methods, and Knowledge (pp. 1–26). New York: Palgrave Macmillan.